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A Dama das Sombras I

  • Foto do escritor: Laura Lopes
    Laura Lopes
  • 10 de jun.
  • 8 min de leitura

POV

NINA

22/Jun


Era uma manhã chuvosa e lamacenta, quando os policiais bateram na minha porta. Eu os cumprimentei, ainda um pouco alheia a situação ao meu redor, sem querer acreditar que aquilo realmente fosse verdade. “Se eu tentar o suficiente”, pensei, “talvez possa continuar fingindo que tudo não passa de uma grande piada”. 

Os policiais, entretanto, tinham outros planos: 

— Senhora, podemos nos sentar, por gentileza? — O tom de pergunta quase funcionou para amenizar o peso de uma ordem. Vou precisar ir até lá e revelar tudo o que sei, pensar em cada detalhe que puder. Desisto do meu teatro eufemista. 

— Claro, por favor, fiquem à vontade — Direcionei-os para minha cozinha bem organizada, balcões extensos e sem um grão de poeira à vista, paredes pintadas de cinza que agora revelam apenas falta de personalidade e solidão. A mesa fica no centro do cômodo, com seis lugares espaçosos. 

Reparo na casualidade com a qual lidam com a papelada, ao se acomodarem na mesa, documentos e fotografias que, em algum lugar, indicarão o motivo da morte do meu marido. Pelo menos, é isso o que esperamos. 

— Não estamos aqui para pressioná-la, e caso se sinta desconfortável com qualquer coisa, podemos dar uma pausa — esclareceu a policial, uma mulher troncuda e morena, mas com feições simpáticas. Apesar de tudo, isso não funciona para me acalmar. 

— Certo, então, qual foi a última vez que a senhora viu seu marido? — perguntou o policial de cabelos escuros e pele clara, um homem de meia-idade que já exibia os primeiros sinais da calvície.

— Quando ele saiu para trabalhar, como em qualquer outro dia comum — comecei a relembrar nosso último dia junto — Fiz o café da manhã para ele, e ele comeu. Não conversamos muito, ele parecia estar pensativo, então evitei interrompê-lo. Ele não gosta muito, sabe? No geral, ele que puxa conversa, caso queira, mas ele é um homem de poucas palavras — prossigo, me esforçando para lembrar de detalhes relevantes — Comentou algo, não me lembro o que, sobre o amigo dele, que veio de longe nos visitar na noite anterior ao… — Não consigo terminar a frase, pois ainda me nego a crer totalmente que isso tudo não passa de um mal-entendido. Os policiais, no entanto, não compartilham do mesmo sentimento que o meu, e voltam a perguntar os detalhes. 

— Quando seu marido quis pouca conversa com você, você se sentiu irritada? Talvez, até um tanto desprezada? — Claro que não é surpresa que a mulher da vítima seja uma potencial suspeita. Não tenho motivos para ficar incomodada com o questionamento feito pela policial. Mas, ainda assim, fico.

— Não. Não era incomum que isso ocorresse — respondo simplesmente.

— E quanto ao jantar da noite anterior? — indaga o policial enquanto faz anotações rápidas. Somente agora percebo que não prestei atenção ao nome deles. Me recordo que falaram algo comigo quando atendi a porta, devem ter se apresentado. Não me lembro, mas parece que passou da hora de perguntar sobre isso sem parecer arrogante.

— Convidamos alguns amigos que não víamos há muito tempo. A maioria se mudou, e por isso foi realmente difícil conciliar um dia em que todos pudessem estar presentes. Foi uma noite muito especial e agradável, sem intrigas — detalhei, esperando ser o suficiente para que os policiais não precisassem revirar mais informações daquela noite.

— Vou precisar que liste todos os presentes no jantar, por favor — solicitou o policial, a caneta preparada. Reparando na minha hesitação, ele emendou — Isso não significa muita coisa, apenas precisamos ser extremamente detalhistas, se estiver tudo bem pela senhora?

— Certo — começo, um pouco mais tranquilizada — Éramos nós dois, Thiago e eu. Um casal de amigos meu, Amélie e Nicolas, e um amigo dele, Cristian. Meu marido também chamou sua colega de trabalho, Emília, e o marido dela, mas este não pode vir, então ficamos somente nós seis — Naquele momento, ouvimos batidas em minha porta, e eu olho confusa para os policiais, tentando descobrir se poderia ser algum outro tipo de especialista, mas eles se mostraram tão surpresos quanto eu.

— Com licença — pedi.

Ao abrir a porta, dou de cara com Amélie e Cristian. Acho estranho eles estarem juntos, pois não são os mais próximos do grupo. Amy conheceu Cristian depois que casei com Thiago, e logo depois ela se mudou para cursar medicina em São Paulo, então eles se conheciam pouco. 

— O que fazem aqui? — perguntei a eles, revelando minha surpresa na entoação.

— Queremos ver como você está, sentimos muito por tudo isso — Ah, sim, meu marido morreu. Faz sentido que meus amigos estejam em minha porta para me consolar. Não sei o motivo de continuar esperando que todos finjam estar tudo bem, junto comigo.

— Claro, entrem! Fiquem à vontade. Tem policiais na cozinha, fazendo algumas perguntas, mas acho que acabará logo — expliquei, ainda um pouco perturbada com tudo.

— Bom dia, senhor. Me chamo Cristian, eu era amigo de Thiago — Ouço Cristian se apresentar aos policiais — Esta é Amélie, também é nossa amiga. Viemos ver como Nina está — ele explicou.

— Bom dia, Cristian — bradou o policial — Me chamo Ted, e esta é Jhulis. Muito prazer. Estávamos apenas fazendo algumas perguntas básicas para Nina, mas preciso pedir total privacidade para prosseguir, se possível.

Os policiais me fizeram mais perguntas sobre as coisas que fiz ontem, e também sobre quaisquer comportamentos estranhos do meu marido, que pudessem indicar medo ou cautela. Respondi que não, contudo a verdade é que não reparei o suficiente no meu marido para relacionar seus comportamentos com um provável estado de alerta por sua segurança. 


Quando os policiais finalmente partiram, me juntei a meus amigos no sofá da minha sala. 

— Então, o que aconteceu? — Eu sabia que não se tratava de uma pergunta idiota, pois Amélie não queria saber das coisas que já havia visto nos noticiários, e sim a minha versão, completa e detalhada, de todos os fatos e especulações. 

— Ele não voltou para casa ontem — suspirei, cansada — Às vezes, ele se atrasa, por isso no início não me preocupei. Depois, as horas começaram a passar, e passar, e ele não chegava — Meus olhos já começaram a marejar com a culpa do que eu estou prestes a revelar. Afinal, eles são meus amigos, e no momento eu não tenho mais ninguém. 

“Eu fiquei feliz. Nós brigamos naquela noite, após o jantar, quando todos vocês foram embora. Eu pensei que ele ainda estivesse bravo. Que iria pagar um hotel ou dormir na casa de alguém, e voltar para casa hoje, sentindo falta do café que eu sempre faço exatamente do jeito que ele gosta”. 

— Sentimos muito, meu bem — sussurrou Cristian. Eu já havia desistido de tentar segurar as emoções, não adiantava mais fingir. Ficamos todos quietos enquanto eu chorava no colo de Amélie. Permanecemos assim por cerca de uma hora.

— Vou fazer um chá, vocês aceitam? — ofereceu Crist, se dirigindo até a minha cozinha. Quis me levantar e impedir, dizer que não estava incapacitada e que podia muito bem esquentar uma chaleira de chá para dois convidados. Mas Amélie foi mais rápida, e me segurou mais forte em seus braços, recomendando que eu descansasse. Ela me conhecia bem demais, o suficiente para entender de onde vinha o ímpeto de me provar o suficiente. 


Apesar de amar bastante meu marido, nosso relacionamento estava se deteriorando aos poucos, mas a tempo suficiente para causar mudanças sólidas. Minha amiga não demorou a perceber, naquele jantar, quando todos nos reunimos. Talvez o tempo longe tenha contribuído para a facilidade com a qual ela notou o tamanho do buraco que eu vinha cavando abaixo dos meus pés. 

O problema é que as doses são servidas na medida certa para que eu acabe onde estou, Amélie explicou mais tarde. Na cozinha, enquanto eu limpava tudo, eu confessei aos sussurros os motivos da minha perda de peso e quedas de cabelo. O motivo da exaustão.

Quando as atitudes de Thiago começaram a mudar, foi algo sutil e gradativo. Ele não teve pressa em ferrar com a minha cabeça. Começou a listar, quase que diariamente, todos os motivos pelos quais eu deveria agradecê-lo. Eu devia agradecer o fato de que um homem tão incrível estivesse, diariamente, se dispondo a continuar do meu lado. Eu agradecia, claro, pois realmente me sentia sortuda. Ora, quem pode dizer que seu homem insiste para que você use seu dia de domingo para descansar, enquanto ele limpa a casa para você?

Quando percebi que cada favor, pequeno ou grande, acabava em cobrança, já era tarde demais. Afinal, eu nem iria negar nada a ele; os sacrifícios são nada mais do que pequenas trocas a se fazer por alguém que você ama e quer ver feliz, não? 

É justo. 

Pareceu justo.

Mas o amor não é isso. O amor não cobra, não faz pressão e nem te faz sentir culpada. Não é como se eu não soubesse que havia algo errado, mas simplesmente me negava a aceitar que a pessoa que um dia foi tão gentil comigo, pudesse agora estar me manipulando. 

Ele é bom. Ele me ama.

Ele era bom. Ele me amava.

Amélie concluiu que eu não tinha a obrigação de provar que amava ele, especialmente quando se tratava de manter a casa organizada. Contei a ela como ele andava dizendo que eu estava diferente, que estava amando ele menos, porque deixei a louça suja na pia uma vez. Ele me pressionou, dizendo que sabia que eu estava pensando no meu (suposto) amante, e por isso me esqueci da louça ali. Depois disso, passei a sempre fazer questão de manter tudo em ordem, apesar de qualquer cansaço. 

Ao ouvir isso, pude perceber como minha amiga estava se contendo para não estapear a cara dele na sala, incrédula com um discurso tão ridículo, o qual eu tomei como verdade sem hesitar. 


— Nina — começou Amélie, pausadamente, como se o fato de demorar para pronunciar meu nome fosse aliviar a pergunta que estava prestes a fazer. Não chamo de acusação, pois sei que Amy não me colocaria como a vilã dessa história — foi você?

— Não — garanto a ela, sem demonstrar estar ofendida — Ele saiu de casa e não voltou. É tudo o que sei. O vi pela última vez ontem de manhã, e não posso nem ter certeza se chegou ao trabalho, ou o que fez durante o dia, pois eu o estava ignorando. Posso ter desejado que algo acontecesse, sabe? Depois daquele jantar, brigamos feio, e eu desejei fortemente que ele se ferisse, mas eu nunca faria algo assim — completo, parando para respirar fundo, ao me dar conta de algo — Os noticiários suspeitam de assassinato?

— Você não viu a televisão? — questionou Amélie, sem fazer questão de disfarçar a surpresa.

— Não — murmuro constrangida — Confesso que estava tentando negar que algo poderia ter acontecido. Quando liguei o noticiário de manhã, eu simplesmente desliguei antes que eu assistisse o suficiente para se tornar verdade e… — Eu sentia minhas justificativas se dissolvendo em contato com o ar, parando de fazer sentido quase que imediatamente. Me senti envergonhada, uma pessoa terrível. 

— Você não tem culpa — declarou Cristian, repentinamente. Eu nem mesmo havia notado sua presença de volta, agora com três xícaras de chá e um pote de açúcar. Agradeci com um aceno de cabeça e me servi de uma xícara

— Não agimos de maneira racional quando estamos em estado de choque. Ninguém espera isso de você. Por favor, não se culpe por algo assim, não faz sentido. Ninguém poderia evitar nada disso de acontecer — ele continuou, fazendo Amy esquecer da origem do assunto.

Passamos as próximas horas assim, no meu sofá: conversando, chorando, me consolando. E de novo. E de novo. 

Amélie fez algo para comermos perto do meio dia, e eu começava a me sentir um pouco melhor a cada instante, com eles ali. 

Porém, eles também tem uma vida, e apesar de mim, precisam voltar para suas obrigações. Amélie partiu primeiro, e um tempo depois Crist quis ir embora, mas já estava muito escuro, e pedi que ele continuasse na casa, comigo. Sei que, apesar das distrações diurnas, os piores pensamentos só tomam forma quando está escuro demais para se proteger. 


Ele ficou.


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